Da emergência à política de Estado: como a Política Nacional Aldir Blanc se tornou o centro das disputas culturais no Brasil (2022–2025)

Daniela Fávaro Garrossini, Universidade de Brasília / Observatório de Políticas Culturais. Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi
Universidade de Brasília / Observatório de Políticas Culturais

Quando uma política emergencial decide ficar

Em julho de 2022, o Congresso Nacional brasileiro aprovou a Lei nº 14.399, instituindo a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB). À primeira vista, a medida parecia apenas a continuidade de ações emergenciais criadas durante a pandemia de Covid-19 para socorrer um setor duramente impactado pelo fechamento de atividades culturais. Três anos depois, no entanto, a PNAB se consolidou como o principal eixo da política cultural brasileira, ao mesmo tempo em que se tornou objeto de intensas disputas políticas e orçamentárias.

A trajetória da PNAB entre 2022 e 2025 revela mais do que a criação de um novo mecanismo de financiamento. Ela evidencia uma tentativa deliberada do Estado brasileiro de transformar respostas emergenciais em política pública permanente, reorganizando a relação entre governo federal, estados, municípios e agentes culturais. O processo, no entanto, esteve longe de ser linear.

O que é a PNAB, e por que ela importa

Para leitores não familiarizados com o caso brasileiro, é importante contextualizar. O Brasil é uma federação composta por 5.570 municípios, com profundas desigualdades regionais e institucionais. Historicamente, as políticas culturais federais concentraram recursos nos grandes centros urbanos e em mecanismos de incentivo fiscal, como a Lei Rouanet, fortemente dependentes do mercado.

A PNAB propõe uma lógica distinta. Instituída como política permanente, ela prevê transferências diretas e regulares de recursos da União para estados, municípios e o Distrito Federal, que passam a executar ações culturais localmente. Em contrapartida, os entes federativos devem apresentar planos de ação, realizar escutas públicas com a sociedade civil e prestar contas da aplicação dos recursos.

Em termos financeiros, a política movimenta bilhões de reais em ciclos plurianuais, alcançando praticamente todo o território nacional.

Quadro 1: Estados aderentes ao Ciclo 1 da PNAB (2023-2024).
Fonte: Painel de Dados da PNAB – Ministério da Cultura.

Segundo dados oficiais do Ministério da Cultura, até 2024 mais de 95% dos municípios brasileiros haviam aderido à PNAB, um índice inédito na história das políticas culturais do país.

Da lei à prática: o redesenho do federalismo cultural

A regulamentação da PNAB ocorreu em outubro de 2023, por meio do Decreto nº 11.740, já no contexto da recriação do Ministério da Cultura no início do terceiro governo Lula. A combinação entre nova estrutura institucional e financiamento regular reposicionou o papel do governo federal como indutor da política cultural, sem centralizar a execução.

Na prática, isso significou uma mudança relevante no federalismo cultural brasileiro. Municípios que nunca haviam operado políticas culturais estruturadas passaram a criar conselhos, organizar consultas públicas e estabelecer critérios próprios de distribuição de recursos. Em muitos casos, a PNAB funcionou como primeiro contato formal entre o poder público local e os agentes culturais do território.

Esse movimento, no entanto, também expôs desigualdades. Municípios com menor capacidade técnica enfrentaram dificuldades na elaboração de planos, na condução das escutas públicas e na execução financeira. Ainda assim, a política criou um incentivo concreto à institucionalização cultural local, algo historicamente ausente em grande parte do país.

Imagem 1: Fotografia institucional do lançamento Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB). Fonte: Ministério da Cultura: https://www.flickr.com/photos/ministeriodaculturaoficial/albums/72177720312206001/page2 Fotos: Filipe Araújo/ MinC, Luciele Oliveira/ MinC e Victor Vec/ MinC

O momento de tensão: orçamento, Congresso e disputa política

A consolidação da PNAB como política de Estado encontrou seu maior teste entre 2024 e 2025. Durante a tramitação do orçamento federal, propostas de redução significativa dos recursos destinados à política mobilizaram gestores culturais, artistas e organizações da sociedade civil em todo o país.

A possibilidade de cortes colocou em evidência um ponto central: transformar uma política em lei não garante automaticamente sua sustentabilidade política. A PNAB passou a simbolizar, para seus defensores, a retomada do papel do Estado na promoção dos direitos culturais; para seus críticos, tornou-se alvo de questionamentos sobre gastos públicos e prioridades governamentais.

Esse embate deslocou a política cultural para o centro do debate público, algo raro no Brasil. Ao mesmo tempo, revelou a dependência das políticas culturais em relação às dinâmicas do Legislativo, mesmo quando formalizadas como políticas permanentes.

Para ilustrar a dimensão orçamentária da política no nível local, foram utilizados dados do Painel de Dados da Política Nacional Aldir Blanc referentes aos planos de ação municipais. No Ciclo 1 (2023–2024), observa-se uma distribuição diversificada dos recursos, com predominância do fomento cultural direto, enquanto no Ciclo 2 (2025) os recursos aparecem concentrados na execução da política como ação única, refletindo ajustes no desenho operacional do programa.

Quadro 2 e 3: Distribuição dos recursos da Política Nacional Aldir Blanc nos planos de ação municipais (Ciclos 1 e 2). Fonte: Painel de Dados da Política Nacional Aldir Blanc – Ministério da Cultura.

O que o caso brasileiro ensina à região

Embora situada em um contexto nacional específico, a experiência da PNAB oferece elementos relevantes para outros países da América Latina. O modelo brasileiro combina: financiamento regular, descentralização da execução, indução institucional, e participação social obrigatória.

Ao mesmo tempo, evidencia limites comuns à região: dependência orçamentária, assimetrias institucionais e fragilidade política das agendas culturais frente a ciclos eleitorais.

Mais do que um modelo pronto para ser replicado, a PNAB funciona como experiência em curso, cujos resultados ainda estão sendo produzidos e disputados. Seu principal legado até aqui talvez não esteja apenas nos recursos transferidos, mas na tentativa de reposicionar a cultura como política pública estruturante, e não como ação episódica ou simbólica.

Conclusão

Entre 2022 e 2025, a Política Nacional Aldir Blanc deixou de ser uma resposta emergencial para se tornar o eixo central da política cultural brasileira. Nesse percurso, revelou tanto o potencial quanto as fragilidades de se construir políticas culturais em sociedades federativas marcadas por desigualdades territoriais e instabilidade política.

A PNAB mostrou que é possível ampliar o alcance territorial da política cultural e fortalecer a gestão local. Ao mesmo tempo, expôs que a consolidação de políticas culturais como políticas de Estado exige mais do que leis: requer estabilidade institucional, compromisso orçamentário e sustentação política contínua.

Para o Brasil, e para a região, a experiência da PNAB permanece aberta, como um laboratório vivo de federalismo cultural em tempos de disputa democrática.

Fontes e documentos consultados

BRASIL. Lei nº 14.399, de 8 de julho de 2022 – Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura.https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14399.htmBRASIL.

Decreto nº 11.740, de 18 de outubro de 2023 – Regulamenta a PNAB.https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/d11740.htm

MINISTÉRIO DA CULTURA. Painel de Dados da Política Nacional Aldir Blanc.https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/politica-nacional-aldir-blanc/painel-de-dados

MINISTÉRIO DA CULTURA. Plano Nacional de Cultura 2025-2035. https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/plano-nacional-de-cultura

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